A hera na janela, uma construção compartilhada
- DIONÉIA GAIARDO
- 7 de jan.
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de jun.
Era 2020, a pandemia pelo Covid-19 nos internou, cerceou o trânsito existencial e geográfico de muita gente mundo afora, reduziu drasticamente as relações pessoais e nos obrigou ao contato virtual. Partilhantes se viram obrigados a voltar para cidades do interior, alguns voltaram a morar com a família, passaram a trabalhar home office, houve quem perdeu o emprego, as relações e até quem “perdeu a cabeça”...muitos eram os discursos, as teorias, os medos, muitas eram as novas regras, pesquisas, perdas...tudo isso no mundo dos adultos e eu em casa pensava: como estão as crianças?
Aquela pergunta rondava minha mente...poucos dias depois recebo a mensagem de uma amiga solicitando atendimento para o filho. Eram tempos desafiadores, passamos por uma adaptação enquanto filósofos clínicos que defendiam os encontros presenciais. Tivemos que atender virtualmente e aprendemos que é possível fazer um bom e sério trabalho clínico em modo online. Iniciamos os encontros com essa criança em 2020 e finalizamos em 2023, foram três anos de construções compartilhadas com ele e com a família.
Talvez um bom pré-juízo nesse caso seja o de que, é fundamental a parceria com a família, especialmente com as mães ou com os principais cuidadores. A presença e a confiança da mãe foram importantes para o desenvolvimento da clínica, para a coleta de dados e inclusive para a aplicação submodal. É preciso pensar que em termos de construções compartilhadas as possibilidades são infinitas, basta cuidar da conduta clínica no sentido de conduzir as sessões de acordo com as estruturas de pensamento envolvidas.
Inicialmente a criança estava bastante triste e com medo, as emoções o levavam a passar os dias em seu quarto. Havia mudado de cidade e sua busca e queixa principal eram as amizades. Seu refúgio, o videogame. O formato das aulas que vinham em folhas para preencher era desmotivador. Aos poucos fomos trabalhando essas e outras questões até chegarmos ao assunto último. Quando os pais o cobravam nos estudos, ele encontrava um modo eficiente de viajar pelas ideias complexas.
Um dia desses viajei num raio de luz com ele, esse raio entrava pela fresta, voltava para fora, batia em uma planta e depois em uma nuvem...meu Deus do céu dizia ele, onde vai parar esse raio? Rimos muito! Mas era assunto sério. As cobranças de matemática, gerando interseções negativas, tornaram-se motivo de conquistas, notas altas, agora uma autogenia a sustentar interseções positivas.
Aos poucos fomos deixando as ideias complexas e encontrando as sensações, dos pensamentos abstratos aos sensoriais, do deslocamento longo ao deslocamento curto. Fomos saindo do quarto para a sala, depois passamos pelo jardim. O menino compreendia com sentimento a paixão da mãe pelas plantas e mostrava orgulhoso as flores e folhagens que cresciam ali, disse com convicção e até levantou o dedo, “tudo que a minha mãe planta, cresce”.
Nessa fase ele não gostava muito do quarto porque bem, não andava gostando muito da vida que via...foi então que pensamos em colocar uma planta no quarto, talvez uma espada de são jorge, de fácil cultivo e adaptação e também uma planta do lado de fora da janela. Já abríamos a janela em todas as sessões e um verde cairia bem. Na semana seguinte já tínhamos uma hera bem ali.
O desfecho da mãe nesta construção compartilhada foi fundamental e tornou-se símbolo do que acontecia em clínica, o crescimento e desenvolvimento pessoal foi acompanhando o crescimento e desenvolvimento da hera, mais tarde apareceram outras plantas, agora em uma bela composição vista de sua janela. A hera tornou-se um vice-conceito, essencial para a nossa produção semanal e motivador para alavancarmos e estruturarmos a nova composição autogênica dessa singularidade em desenvolvimento.
Com as questões da Covid-19 mais definidas, vacinas, retomada das relações presenciais, chegou o momento de voltar para a escola e redescobrir as amizades, formar novos laços. Nessa fase da clínica o partilhante afirmava já estar acostumado com mudanças. Sua epistemologia passou de uma incompreensão de mundo através das crises existenciais como ele definia, para o entendimento de que tudo muda e se tudo muda, tudo também é passageiro, descobriu ele.
É por isso que agora uma mudança de casa, de cidade, de estado, de relações, de sentimentos, de escola, de amizades é para ele a vida acontecendo, até o que dói vai passar. Ele encontrou um lugar de conforto para ir se descobrindo no que socialmente inventamos como pré-adolescência, apreciando sensações e amizades, responsabilidades e sonhos.
A construção compartilhada e a compreensão da mãe pensando que a terapia para o filho deveria ser filosófica, foram a base para o contato com a singularidade existencial do menino, que pode vivenciar rascunhos, ensaios pessoais e compreensões sobre a vida longe da tarja preta do alienista. Recentemente recebi a foto do menino na janela e sua hera ao fundo, cortinas esvoaçantes, novos ventos e a vida se reinventando inevitavelmente.
Dionéia Gaiardo
Filósofa Clínica
Referências:
CARUZO, Miguel Angelo. Introdução à filosofia clínica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.
FONTOURA, Fernando. O ser terapeuta em filosofia clínica. 1. ed. Porto Alegre, RS: Ed. do Autor, 2023.
STRASSBURGER, Hélio. Filosofia clínica e literatura: conversações. Porto Alegre, RS. Sulina, 2023.
Texto originalmente publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica
Edição 07, verão de 2023.
Acesse a revista completa: https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2023/12/revista-da-casa-da-filosofia-clinica-verao-2023.html.
* As expressões em itálico que aparecem no texto referem-se a linguagem específica do método em Filosofia Clínica. Para conferir o sentido e significado delas, acessar o link do Dicionário de Filosofia Clínica: https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2024/03/revista-da-casa-da-filosofia-clinica-outono-2024-dicionario.html.

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