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Caminito da arte

Atualizado: 10 de jul.

Em 2022 fiz alguns trabalhos em parceria com o artista Alejandro Ruíz. Envolvido em coletivos que visam expandir o acesso à arte para o público em geral, recebi seu convite para trabalhar com a curadoria da exposição coletiva “Outras narrativas: as Artes Plásticas e a Literatura”, um tema que me fez viajar no tempo para pensar sobre essa relação entre imagens e palavras. O namoro é tão antigo que é creditado a Simónides de Ceos (556 a.C – 468 a.C) a afirmação “A pintura é uma poesia silenciosa e a poesia é uma pintura que fala”.


Na obra “A traição das imagens”, o pintor surrealista René Magritte insere na arte visual o enunciado como se fosse uma legenda: “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo), reafirmando a relação entre a escrita e a imagem. De forma provocativa isso nos faz pensar se o que vemos é a coisa em si ou se é outra coisa. Afinal, a pintura de um cachimbo não é um cachimbo? Bem, foi o que disse o pintor. Em 1968, claramente inspirado por Magritte, o filósofo e historiador Michel Foucault escreve o livro “Isto não é um cachimbo” justamente para pensar a relação entre a imagem e a representação linguística. Inspirações.


Em “Outras narrativas: as Artes Plásticas e a Literatura”, as narrativas literárias serviram de estímulo para que cada talento as traduzisse em imagens. A exposição reuniu dez artistas e dezesseis singulares representações visuais de autores, cenários e personagens da literatura nacional e internacional que marcaram suas trajetórias. Uma forma de homenagear e um momento para agradecer a esses intelectuais criativos da literatura, a inspiração para o fazer artístico. 


Uma das telas que guardo na mente com carinho é “Caminito” da Michele Moura, falecida em 2024, vítima da dengue. Nela Michele retrata um lugar histórico de Buenos Aires, inspirada por Benito Quinquela Martín (1890-1977), um importante artista argentino que pintou obras como  “Regreso de la Pesca” e “Día del Trabajo”. 


A exposição organizada pela Associação de Artistas Ateliê Um foi lançada em agosto de 2022 na Biblioteca Pública Municipal Rui Barbosa de Esteio/RS, em comemoração aos seus 60 anos de existência, e em outubro do mesmo ano percorreu os saguões da Escola Estadual de Ensino Médio Jardim Planalto, na mesma cidade. Talvez a escola possa ser esse lugar de intercâmbio entre artistas, escritores e estudantes, a fim de construírem juntos diferentes formas para compreender o mundo e ampliar perspectivas.


Em “Arte como terapia”, Alain de Botton e John Armstrong nos ajudam a pensar: para que serve a arte? Eles defendem a ideia de que ela serve para nos ajudar a lidar com dilemas íntimos e cotidianos, pois pode oferecer momentos de conhecimento, quando revelam questões históricas, sociais, culturais, políticas e porque não, momentos de autoconhecimento quando, diante de algumas obras, entramos em contato com nossa profunda solidão, com alguma sensação de paz interior ou entendendo a confusão que nos assola...


Já em literatura, é interessante pensar que o ato da leitura nos faz produzir mentalmente uma série de imagens, as quais preenchem a história de modo único, como uma construção compartilhada entre aquilo que o autor escreveu e a película que vou produzindo e assistindo a partir de minhas referências pessoais. As leituras que muitas vezes acompanham os artistas na solidão dos seus ateliês ou em momentos de diálogo com outras pessoas, através dessa exposição, transformaram-se nas imagens que cada artista possuía dentro de si, dando indício de suas singularidades


As obras de “Outras narrativas: as Artes Plásticas e a Literatura” revelaram a habilidade em fazer uma tradução do que mais tocou seus artistas. Se para alguns foi a figura do autor, para outros foi determinado personagem que em algum ponto houve identificação profunda e até mesmo algum lugar importante como no caso da obra “Caminito” citada anteriormente. A admiração, as sensações, as reflexões que a literatura nos causa, foram traduzidas em imagens. E para os apreciadores, tanto as leituras quanto as exposições podem ampliar horizontes éticos e estéticos, colaborando com algum bem-viver para quem inclui essas atividades em suas vivências. 


Eventos de exposições coletivas como essa, demonstram que é possível investir em divulgação de artistas através da construção compartilhada. Buscando como ponto central e comum, um tema. Obtendo, como resultado, uma diversidade de interpretações sobre um mesmo assunto, enriquecendo a ampliando olhares. 


A sensação que ficou, diante desse fenômeno, foi a de uma curiosidade desperta para ler autores que ainda desconheço, reler velhos e conhecidos autores, visitar exposições. Um saldo positivo e altamente potente da arte que inspira arte que inspira a vida. Um círculo que se retroalimenta. Alimento para a alma e, sobretudo, para encarar o cotidiano. Talvez Botton e Armstrong tenham razão sobre o papel terapêutico da arte. Desejo que possamos incluí-la na prateleira de nossa farmácia interna!


Dionéia Gaiardo


Referências:

BOTTON, Alain de; ARMSTRONG, John. Arte como terapia. Tradução: Denise Bottmann. 1.ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

HERMANN, Nadja. A questão do estético: contexto e atualidade. In: HERMANN, Nadja; RAJOBAC, Raimundo (ORGs.). A questão do estético: ensaios. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2019. p. 15-34.

STRASSBURGER, Hélio. Filosofia clínica e literatura: conversações. Porto Alegre, RS: Sulina, 2023.


Texto publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica.

Edição 13, inverno de 2025.


* As expressões em itálico que aparecem no texto referem-se a linguagem específica do método em Filosofia Clínica. Para conferir o sentido e significado delas, acessar o link do Dicionário de Filosofia Clínica: https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2024/03/revista-da-casa-da-filosofia-clinica-outono-2024-dicionario.html.


"Caminito", tela de Michele Moura
"Caminito", tela de Michele Moura

 
 
 

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