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A musa invisível

Atualizado: 25 de jun.


O tempo é uma das cinco categorias que compõem a primeira etapa do método. Alguns partilhantes possuem uma forte relação com essa categoria, que aparece sessão após sessão. Uns mais pautados pelo tempo objetivo, cronológico, outros pelo tempo subjetivo em uma relação muito íntima e específica com ela. Podem aparecer, por exemplo, dificuldades em cumprir horários, compromissos, gerando em outras pessoas de convívio social, interpretações, desconfortos existenciais, significados sobre a incapacidade de adequar-se ao padrão exigido.


Algumas almas simplesmente não nasceram para o tempo cronológico. Em alguns casos, a obrigação de enquadrar-se nele anula inclinações pessoais, sonhos, buscas. Ao passo que, compreender sua relação com essa categoria e respeitar seu tempo subjetivo, possibilita que a pessoa volte a respirar, criar, sentir-se adequada em algum lugar dentro de si mesma – observe como isso interfere na categoria lugar e padrão autogênico – por isso, falamos em adequações em clínica filosófica. 


Pode acontecer de uma das categorias impactar tanto na vida da pessoa ao ponto de inviabilizar interseções com outras pessoas ou consigo mesma. Identificar a relevância de uma categoria na composição com os estudos da estrutura de pensamento partilhante e os submodos, pode fazer uma vida opaca encontrar luz, caminhos, novos horizontes, alternativas para uma vida melhor. 


Depois de um ano de trabalho em construção compartilhada com um partilhante, ouvi atentamente quando mencionou ter desistido de uma clínica psicológica porque a pessoa que lhe atendia  repetia que “o tempo é curto, somos velhos, não temos mais tempo a perder, precisamos agir...”, essas falas – agendamentos máximos – eram causa de mais ansiedades e travamentos, sentia-se paralisado segundo ele. 


Diante dos agendamentos equivocados sobre a categoria tempo emitidos pela terapeuta, possivelmente pautada por sua percepção, distante do que o partilhante apresentava e precisava, a interseção se desfez. Ele resolveu procurar ajuda em outras fontes e encontrou a filosofia clínica. Esse é um exemplo pontual dos riscos de afrontas e ineficácia de métodos que utilizam conhecimentos a priori, dentre outras questões que poderiam ser levantadas. Nesse caso em específico, a busca que o partilhante apresentava e que fazia a terapeuta agendá-lo com a urgência do tempo, era apenas um assunto imediato. Com o passar das sessões foi ficando mais claro que o assunto último estava em outro ponto, embora houvesse relação com a busca que aparecia no discurso inicial. 


O feedback do partilhante sobre nosso trabalho em filosofia clínica dá conta de confirmar a beleza desse método, sua eficácia e alcance. Ao sentir-se ouvido, acolhido, compreendido em sua singularidade, em suas relações categoriais, percebemos que essa alma que eu atendia, era jovem e cheia de vida, extremamente criativa, precisando libertar-se de alguns agendamentos para experimentar outros ares. Via esteticidade seletiva, o desenho e a pintura passaram a funcionar como lugar de livre experimentação, um ensaio para sua expressividade nas relações. Além disso, ele buscava – no tocante a categoria tempo – vivenciar o momento presente, através de seus sentidos e expressividade


Estimulando o sensorial e reservando o abstrato para os planos sobre suas esteticidades seletivas, ganhou tempo. Buscou e fez curso de respiração, um processo que desencadeou a descoberta da inutilidade do rivotril diante de tamanho remédio existencial: respirar corretamente. Assim, os travamentos pouco a pouco se desfazem, enquanto se percebe que o tempo é melhor aproveitado por identificar e acessar sua farmácia interna, enfraquecendo o uso de venenos existenciais que antes cumpriam um papel importante, mas que hoje não fazem mais sentido. 


É tão interessante a observação dos deslocamentos existenciais que ocorrem e as relações com a categoria tempo do partilhante; e pensar que esse trabalho é único, uma arte ao decifrar inquietudes, desconfortos, inadequações, as quais, o partilhante tem transformado em bem-estar, autocuidado, “um sentimento de otimismo interno” que relata sentir pela primeira vez na vida. A manutenção e o aprimoramento desse sentimento aparecem agora como busca, indicando um lugar de conforto para onde se direciona existencialmente. Para isso, não importa a idade e sim a disposição da alma em explorar territórios recentemente descobertos. Talvez mais adiante descubra e explore outros inéditos de si mesmo...


É importante salientar que o exemplo mencionado é um pequeno fragmento de um caso clínico, bem como o texto todo fala de possibilidades em que a categoria tempo pode aparecer; ao cuidador cabe exercitar o olhar fenomenológico e a postura aprendiz para manter a abertura filosófica que o método solicita. A Filosofia Clínica é um paradigma libertário.


Para nós, a singularidade é a musa – ainda invisível, em um mundo onde o que impera é a transformação de comportamentos em doenças, medicalização, lucro – isso não quer dizer que ela não esteja habitando a alma de cada pessoa, à espera de uma oportunidade para se fazer presente. Trabalhar como “aprendiz de singularidades”, usando uma expressão do Caruzo, é ter o privilégio de estar diante desse fenômeno das múltiplas e irrepetíveis formas em que a musa se diz. 


Dionéia Gaiardo

Filósofa Clínica


Texto publicado na Revista da Casa da Filosofia Clínica.

Edição 09, inverno de 2024.


* As expressões em itálico que aparecem no texto referem-se a linguagem específica do método em Filosofia Clínica. Para conferir o sentido e significado delas, acessar o link do Dicionário de Filosofia Clínica: https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2024/03/revista-da-casa-da-filosofia-clinica-outono-2024-dicionario.html.


Livros de alto ângulo e xícara de café, em Freepik.
Livros de alto ângulo e xícara de café, em Freepik.


 
 
 

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