Um convite à singularidade
- DIONÉIA GAIARDO
- 25 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de jun.
Filosofia Clínica é uma nova abordagem terapêutica dedicada ao acolhimento compreensivo da singularidade. Resultado da pesquisa de Lúcio Packter ao perceber os limites das abordagens tradicionais, disponíveis até então. Criada e sistematizada no final dos anos 1980 e com as primeiras turmas abertas na década de 1990, o método foi tomando forma, ajustando conceitos com as aplicações em clínica.
De lá pra cá, recebemos dessa mente brilhante em construção compartilhada com seus primeiros alunos, uma metodologia estruturada com três etapas criteriosas: exames categoriais; estrutura de pensamento e submodos. Essa nova abordagem originalmente brasileira, foi e ainda é alvo de muitas críticas por parte de acadêmicos e profissionais de diversas áreas, incluindo filósofos e médicos, os quais sentem-se ameaçados pelas novas ideias e práticas cuidadoras.
Se não se estuda o método, é fácil pressupor que a filosofia já faz esse trabalho há pelo menos 2.500 anos, considerando uma filosofia ocidental. Sim, essa é uma fonte fundamental para nossa abordagem, porém, não se trata de um aconselhamento filosófico, não aplicamos conteúdo filosófico diretamente: Aristóteles, Sócrates, Platão para encontrar uma verdade última para todas as coisas ou encontrar com Aristóteles um caminho para a felicidade, etc. A não ser que um partilhante demonstre interesse e faça sentido para sua singularidade.
A novidade de Lúcio Packter foi ter pensado uma metodologia com linguagem própria, apropriada à clínica filosófica com vistas a encontrar o fenômeno da singularidade. Trata-se de uma abordagem filosófica porque a própria existência, o ser, tudo é fonte de filosofia – não se refere à doença, como pensam alguns contemporâneos – vida é vivência, criação, acontecimento, acaso recheado de possibilidades.
As abordagens da tradição ainda em pleno funcionamento e aceitação – passiva, carente de uma crítica reflexiva – já se mostra ultrapassada. Por outro lado, a carência de uma comunidade acolhedora, a sensação de não pertencimento a um grupo para encontrar e conviver, a opressão urbana, os individualismos, o consumo, as violências, as armadilhas conceituais criadas em favor do lucro e que ditam padrões de vida, de beleza, de como pensar e não pensar...também regulam padrões de normalidade, classificando sujeitos em tipologias. Assim, temos: depressivos, autistas, borderline, narcisistas, portadores de transtornos e síndromes como o transtorno de ansiedade generalizada, o TDAH, etc. Se passarmos em frente a uma clínica psiquiátrica, possivelmente receberemos um diagnóstico de doença mental.
É triste verificar o fato de que os modelos de cuidado com base em classificação cumprem um papel social de fazer com que a pessoa se sinta pertencente a algo, nem que seja a um grupo de doença mental, a quimera dos nossos dias. As generalizações e as tipologias podem pegar pela carência, pelas dificuldades, dores existenciais, fragilidades, como uma porta entreaberta ao caos. O resultado é o olho e a caneta do alienista a ditar o seu saber-poder através do diagnóstico e da medicação da vida, quando não oferecem medidas mais violentas, como internações involuntárias, eletrochoques, a destituir a pessoa dela mesma.
A Filosofia Clínica é um novo paradigma porque rompe com essa lógica de saber-poder e enquadramento e faz com que a pessoa se depare com sua irrepetível historicidade, sua inevitável singular existência com toda carga de complexidade da vida, do mundo, da própria mente, das manifestações místicas, axiológicas, criativas, culturais, que percorrem sua alma por inteiro. Não é de se surpreender que os partilhantes encontrem na Filosofia Clínica, novas linguagens para se dizer, um processo libertador em amplos sentidos, em especial dessas amarras sociais criadas para dar lucro às grandes corporações de psicofármacos. “Acessar a obra de arte do sujeito em seus rituais de desconstrução existencial, reivindica a superação dos discursos prontos, verdades pré-estabelecidas, os quais atrapalham sua busca para superar antigos endereços existenciais e se reinventar.” (STRASSBURGER, 2024)
Um partilhante ao se direcionar a sua farmácia subjetiva em desafio a lógica da medicalização comportamental, pode encontrar ingredientes como estudos e viagens, inicialmente locais, mais tarde internacionais, lançando-se em direção a si mesmo em um mundo que lhe faça sentido, provando os remédios de sua farmácia interna e compreendendo que isso vale mais que as classificações e suas camisas de força disfarçadas de cuidado. Outros partilhantes encontrarão outros caminhos, de acordo com cada originalidade. Como destaca Ancile Leal, “Grande assimetria está no fato de que na FC não há teoria a priori. O Filósofo Clínico não parte de um conceito preestabelecido.” A Filosofia Clínica é um convite à singularidade, é uma opção para viver mais e melhor tendo como ponto de partida o saber do partilhante.
Dionéia Gaiardo
Referências:
STRASSBURGER, Hélio. A camisa de força e o eletrochoque. Revista Casa da Filosofia Clínica. Porto Alegre, Edição 07, p. 24-25 - Verão/2023.
LEAL, Ancile. O que a Filosofia Clínica não é? Revista Casa da Filosofia Clínica. Porto Alegre, Edição 11, p. 6-97- Verão/2024.
Texto publicado no e-book: O que é Filosofia Clínica? as singularidades e o método. Organizado pelo filósofos clínicos Miguel Angelo Caruzo e Paulo Alves Filho. Teresópolis/RJ, 2025. Editora Texto Vivo. Disponível gratuitamente em: https://drive.google.com/file/d/199fyd03T6_431nqEGG-CAKRxOtlsOYIT/view
Autores que participam do livro:
Ana Rita de Calazans Perine
Daniel Gaiardo
Danilo Patutti
Dionéia Gaiardo
Everton Augusto Corso
Fernando Fontoura
Gilberto Sendtko
Hélio Strassburger
Jefferson Malva
Lara Cunha Freitas
Márcia Deister
Miguel Angelo Caruzo
Paulo Alves Filho
Robson de Oliveira Santos
* As expressões em itálico que aparecem no texto referem-se a linguagem específica do método em Filosofia Clínica. Para conferir o sentido e significado delas, acessar o link do Dicionário de Filosofia Clínica: https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2024/03/revista-da-casa-da-filosofia-clinica-outono-2024-dicionario.html.

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